Ágrafo: Galeria Luisa Strina

Apresentação

E se puder não esqueça
o rosto calmo do tigre
que está parado na porta
Esperando para entrar
E para depois nos atravessar

Matilde Campilho[1]

Decifra-me ou devoro-te

Marta Mestre

Raymond Roussel, escritor considerado por André Breton como “o maior magnetizador de todos os tempos”, foi um desses ilustres desconhecidos que influenciou meio mundo de conhecidos, e que antecipou as experiências de flutuação entre significado e significante realizadas na literatura, no cinema e nas artes visuais do século XX. Em grande parte de seus livros – Impressions d’Afrique (1910) e Locus Solus (1914), entre outros – Roussel desenvolveu pioneiros procedimentos de linguagem que viriam a ser usados especialmente pelos dadaístas e surrealistas. Por exemplo, o uso extensivo de palavras homônimas ou parecidas, como é o caso de “billard” [bilhar] e “pillard” [saqueador], permitiu-lhe construir frases e textos arbitrários na forma e no conteúdo, elevando, assim, a potência patológica da linguagem.

Os jogos de palavras, praticados incessantemente ao longo de toda sua vida, levaram-no a descobrir espaços insuspeitos na escrita, e a atestar a existência de uma segunda realidade – não como repetição da primeira, mas como alternativa hilariante –, até cometer suicídio por excesso de barbitúricos em um hotel em Palermo, na Itália, aos 55 anos.

Sobre o lado anedótico de Roussel, conta-se que, depois de atravessar o Atlântico para conhecer a África, ele vislumbrou o continente da escotilha do navio e, satisfeito, pediu ao comandante que desse meia-volta. Verdadeiro ou não, o fato ilustra bem o desinteresse pela verificação etnográfica do século XIX, dando-se início a um gosto pelas experiências da linguagem desvinculadas do real e totalmente abertas à primazia da imaginação, marca do século XX.

“Ágrafo”, de Laura Lima, decorre dessa genealogia deslanchada por Roussel, embora não chegue a reivindicar uma paternidade, pois não se trata de reconhecer uma filiação para daí exercitar o vocabulário “autorizado” do cânone. Ainda assim, reconhecemos uma familiaridade entre “Ágrafo” e outros trabalhos de Laura Lima com o território surrealizante, ao mesmo tempo pragmático e disruptivo; estético e ético.

Encoberta, dissimulada e insinuando-se continuamente, a questão principal que Laura Lima apresenta com “Ágrafo” (que só se trata de uma exposição porque estamos em uma galeria) diz respeito ao que ainda não nos foi dado, ou sequer foi formulado. Os objetos aí instalados existem em um tempo em que a linguagem não acontece. Um tempo em que as coisas, ainda sem nome (“ágrafo” significa “o que não está escrito”), levitam em suspensão sem aderir aos signos e aos atos narrativos. Por razão desse descompasso, “ágrafo” soa como um “vazio que arranha”,[2] um fosso escavado nas palavras, da mesma forma que soará sempre estranho o enigma saído da boca de uma esfinge antiga. As palavras nos magnetizam sem que seu conteúdo “se chegue a colocar”.[3]

Procurando discernir a África através da escotilha inclinada do navio, Roussel pediu para regressar, desacreditando na experiência e acreditando em sua imaginação. Ou talvez não seja possível ser razoável, nem mesmo em alto-mar, ou aqui, diante desses objetos suspensos, cobertos por diferentes tecidos e amarrações de cordas que nos vedam o seu interior. Explico: os objetos caem das paredes de uma forma descoordenada e desequilibrada. Alguns dos formatos são familiares, principalmente os quadrados e os retângulos (esconderão pintura?), porém os volumes e as formas pontudas desfazem as nossas primeiras suposições. De fato, não sabemos o que eles contêm, nem sabemos se virá a ser posta em prática uma estratégia de desvelamento, mas, quem os venha a possuir, não escapará do enigma da esfinge. Porque ela continuará a nos olhar, a nos questionar, para, finalmente, nos devorar.

A ideia de decifração está, portanto, fora de questão para Laura Lima. Nem mesmo os glossários, aos quais a artista vem se dedicando, oferecem chaves de leitura. Nisso, o compositor Tom Zé, outro rousseliano sem o saber, tem aquele verso certeiro que parece vir ao caso: “Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer”.[4]

Em alternativa, “Ágrafo” põe em marcha um jogo em forma de equação não linear, em que de um lado temos a linguagem, e, de outro, a matéria. O que nos diz essa equação é que quanto mais rarefizermos a necessidade de “grafar” (escrever, nomear, interpretar), mais aumentaremos a ocorrência de uma densa materialidade e substância. Partindo desse princípio, chegaremos a dois opostos complementares: no caso da linguagem, o balbuceio ou a gaguez, e, no caso da matéria, uma erótica dos elementos.

Como surtos da linguagem, a gagueira ou a balbúcie atualizam algo subitamente necessário e vital, criado por força de um encontro violento com o ainda não pensado e não pensável. Samuel Beckett chamou isso de “inominável” e Gilles Deleuze configurou-os como “ocorrências do desejo”. Ambos são evidências de um momento em que o compromisso entre significado e significante ainda não é grafado e o investimento discursivo é deslocado para a força da cena. Trazer uma vaca para passear numa praia de Ipanema,[5] por exemplo, ou a série de títulos fonéticos ou homônimos como “Marra”, “Bala”, “Ágrafo”, “RhR” são ocorrências expressivas de surtos.

Cordas, nós, liames, tecidos, padronagens, costuras ou redes sustentando objetos pendurados não estão aqui para dar concretude à cena, mas, antes, para enredar o espectador. Como no shibari, a arte japonesa de amarração por cordas, essa combinação de elementos imobiliza e investe contra a racionalidade instituída. Os objetos incorporam qualidades psicológicas e expõem marcas de sexualidade, dor e devassidão expressas através da perfuração e do corte dos tecidos que cobrem os enigmas do interior.

Alguns autores preferem manter divididos os “cativeiros” do surrealismo e do construtivismo; em “Ágrafo”, ao contrário, perpassa a ideia de que é um erro apartá-los. O jogo da linguagem, solto e livre, reveste-se de uma densa materialidade. Sem contradição, Laura Lima nos mostra que a criação do enigma, enquanto práxis vital,[6] acontece no momento em que a imaginação é “submetida” à maquinaria, que pode ser extremamente bela mas também extremamente perversa: como podem ser a arte, a linguagem, a loucura, a escotilha de um navio, a esfinge.

Julho de 2015.

[1] “We never did too much talking anyway” in: Matilde Campilho, Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015.
[2] Luiz Camillo Osorio referindo-se ao trabalho “RhR (1999)”, concebido como um “organismo” agenciador de pessoas e nomeações do qual Laura Lima é “administradora” escreve: “RhR é um não-nome, não tem som adequado, não produz imagem, nenhuma referência metafórica; é um significante vazio e ansioso, é um vazio que arranha: RhR” in “O delírio da pele”. Prêmio Marcantonio Vilaça, Brasília, CNI/Sesi, 2008.
[3] Conversa com a autora deste texto em que Laura Lima menciona sua hesitação em adotar o feminino “Ágrafa” ou o masculino “Ágrafo”, aludindo à qualidade “neutra” do termo. Cf. O neutro de Roland Barthes, seminário ministrado em 1978 no Collège de France.
[4] Em Comment j’ai écrit certains de mes livres (1935), Roussel exercita o hermetismo, mas nada diz sobre como escreve os seus livros.
[5] Trabalho realizado por Laura Lima em 1994, “Vaca na praia” pertence ao conjunto de trabalhos “Homem-carne/ Mulher-carne”, e “Marra” (1996), em que dois homens, com as cabeça conectadas por um capuz, lutam até perderem suas forças, e “Bala” (1997), em que um homem nu (pessoa = carne) permanece sentado com a boca aberta por um instrumento, enquanto uma bala é colocada sobre sua língua.
[6] Cf. Lisette Lagnado in Laura Lima: on_off , Rio de Janeiro: Cobogó, 2014, p. 23.

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Período de exposição: 05 de Agosto a 19 de Setembro de 2015
Horário de visitação: Segunda a Sexta das 10 às 19h / Sábados das 10 às 17h.

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A Galeria Luisa Strina tem o prazer de apresentar Ágrafo, a segunda exposição da artista brasileira Laura Lima, seis anos depois de mostrar seu trabalho pela primeira vez na galeria.

Desde os anos 90, Laura Lima apresenta sua obra utilizando seres vivos (humanos, animais ou plantas) como matéria, construindo relações inesperadas com o espaço e a arquitetura. Seu intuito está em desafiar conceitos convenientes dentro do vocabulário da arte como a performance ou instalação, por exemplo. A maneira como as formas de comportamento humano reagem à complexidade das relações sociais também é objeto de fascinação da artista, provocando um contínuo exercício em construir um glossário próprio dentro da obra.

Nesta exposição, a artista realiza trabalho inédito, Ágrafo, aquele sem grafia, o não escrito. Obras cuidadosamente construídas e então embaladas com amarrações especiais geram um enigma sobre seu conteúdo, tornando aquilo que está dentro inacessível. Logo que embaladas, a artista dispõe as obras à presença de gatos, deixando com que estas sejam arranhadas pelos animais. Uma semana antes da abertura na Galeria Luisa Strina, as obras já estão à disposição dos animais que são levados a visitar a galeria.

Exposições individuais recentes incluem: The Naked Magician, National Gallery of Denmark, Copenhagen (2015); El Mago Desnudo, Museo de Arte Moderno de Buenos Aires (2015); Bonnierskonsthall, Estocolmo (2014); The Fifth Floor, Bonnefantenmuseum, Maastricht (2014); Bar Restaurant, Migros Museum für Gegenwartskunst, Zurique (2013); Por amor a la disidencia, Museo Universitario Arte Contemporáneo, Cidade do México (2013); Casa França Brasil, Rio de Janeiro (2011).

Laura Lima também participou recentemente das exposição coletivas: Encruzilhada, Parque Lage, Rio de Janeiro (2015); 140 Caracteres, Museu de Arte Moderna de São Paulo (2014); Circuitos Cruzados – Centre Pompidou meets MAM, Museu de Arte Moderna de São Paulo (2013); 12 Rooms, Ruhrtriennale, Essen (2012); 11a Bienal de Lyon (2011). Em 2014, a artista ganhou o BACA, Bonnefanten Award for Contemporary Art, o mais prestigioso prêmio holandês dado a um artista internacional.

Seu trabalho faz parte das coleções do Museu de Arte Moderna de São Paulo; Instituto Inhotim, Brumadinho; Bonniers Konsthall, Estocolmo; Migros Museum für Gegenwartskunst, Zurique, entre outros.

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